Pedro Baptista, o jovem Farmacêutico que cria órgãos em laboratório

A geração do primeiro fígado humano feito em laboratório foi o resultado mais impactante a nível mundial.

— Pedro Baptista, Aragon Health Sciences Institute

REFlexus (REF): Pode falar-nos um pouco do seu percurso profissional desde que finalizou os estudos na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa até ao presente? Como entrou em contacto com o campo da investigação científica? 

Pedro Baptista (PB): Após a Licenciatura em Ciências Farmacêuticas pela Universidade de Lisboa (2001), estava cansado de livros e quis ver como era o mundo do trabalho fora do ambiente académico. Acabei por ir trabalhar para a divisão portuguesa da Eli Lilly & Co, como monitor de ensaios clínicos. Foi uma experiência fantástica! Não só pelas pessoas com quem trabalhei e pelo que aprendi, mas também pelo que cresci como profissional. O mundo fora da universidade é bem diferente! Especialmente numa grande empresa multinacional. Ao longo desse ano, acabei por decidir concorrer ao Programa Gulbenkian de Doutoramento em Biomedicina (o sonho acabou por ser mais forte…) e fui selecionado, já em 2002. A partir daí, com a ajuda das aulas e dos contactos que tivemos ao longo do primeiro ano académico no Instituto Gulbenkian de Ciência, foi fácil perceber qual a área que mais me apaixonava – a Medicina Regenerativa e as Células Estaminais. Em maio de 2003, fui aos Estados Unidos da América visitar vários laboratórios, incluindo o laboratório do Dr. Anthony Atala, na altura na Harvard Medical School, em Boston. Um pouco antes de viajar para Boston, o Tony contactou-me para me avisar que estava a mudar-se de “armas e bagagens” para a Wake Forest University, na Carolina do Norte (CN), onde ía “montar” um Instituto dedicado à Medicina Regenerativa. Coincidente com a minha chegada a Winston-Salem, na CN (2004), onde permaneci quase 10 anos (até 2013), ajudei a construir um dos maiores Institutos de Medicina Regenerativa do mundo. Uma aventura e, sem dúvida, uma oportunidade para aprender e conviver com pessoas e investigadores fantásticos. Chegado ao fim do post-doc, decidi voltar a casa. Devido à falta de pontaria, aterrei em Espanha, no ano de 2014. Foi em Zaragoza, para ser mais preciso, onde tive a oportunidade de criar o meu próprio grupo de investigação dedicado à Bioengenharia de Órgãos e Medicina Regenerativa. O início foi duro, em plena crise económica em Espanha. Mas a persistência, a fé e o trabalho compensaram. Hoje, somos ao todo nove pessoas (um post-doc, quatro estudantes de doutoramento, um estudante de master, duas research associates e eu, como chefe de grupo).

REF: Porquê a área de Bioengenharia de Órgãos? Curiosidade pelo tema ou vontade de aplicar a Bioengenharia nas áreas da saúde e procurar resolver os problemas e desafios que esta área enfrenta inevitavelmente?

PB: A área da Bioengenharia surgiu quase como um desafio quando comecei o meu doutoramento. Na altura, a possibilidade de fazer um fígado ou qualquer outro órgão sólido, desde o zero, era quase inexistente. No entanto, uma vez lançado o desafio pelo Tony, procurei alternativas à tecnologia existente e a escolha do fígado deve-se um pouco ao meu fascínio como farmacêutico por este órgão, como o principal responsável pela metabolização de fármacos e metabolismo em geral. A consequência direta destas escolhas, realizadas em 2004, foi o primeiro fígado humano feito em laboratório, cinco a seis anos depois. Assim, a minha decisão foi condicionada, num primeiro momento, pelo desafio lançado pelo meu mentor de doutoramento, mas também pela minha curiosidade e interesse pela Medicina Regenerativa e Células Estaminais na resolução da escassez de órgãos para transplante em doentes que esperam anos por um órgão que, muitas vezes, nunca chega… É quase uma obrigação para nós aliviar ou eliminar este verdadeiro flagelo. É esse o objetivo a longo prazo do meu grupo de investigação. É esse o meu objetivo pessoal de carreira como investigador.

REF: Até à data, qual dos resultados das suas investigações considera ter tido maior impacto no avanço da área em questão? 

PB: Creio que, até à data, a geração do primeiro fígado humano feito em laboratório foi o resultado mais impactante a nível mundial. Pelo que desvelou como possível e pelo que deixou antever para o futuro. Atualmente, há projetos em desenvolvimento no grupo, talvez até mais importantes, que esperamos que possam dar um contributo muito positivo nesta e noutras áreas a muito curto prazo.

REF: Atualmente qual é o foco/objetivo da equipa de investigação que lidera no Instituto de Investigação Sanitário de Aragão (IIS Aragão)? 

PB: Presentemente, temos várias linhas de investigação em desenvolvimento, tal como mencionado atrás. O nosso objetivo principal continua a ser a translação, para a clínica, dos fígados de Bioengenharia para o transplante em doentes humanos. Contudo, devido à complexidade e multidisciplinaridade deste projeto, estamos a desenvolver muitas outras linhas e projetos de investigação que ajudam na realização e concretização deste. É impensável gerar um fígado humano in vitro sem ter a capacidade de gerar biliões de células hepáticas a partir de um doente. É impensável gerar um fígado humano in vitro sem ter biorreatores avançados que permitam fazer uma monitorização constante dos tecidos e células nele contidos, etc, etc. Assim, há nesta altura vários projetos próprios e de colaboração com outros grupos de investigação internacionais para resolver estes desafios e tornar assim possível o principal objetivo do grupo: criar um fígado humano de Bioengenharia que possa ser transplantado num doente humano e, de um modo mais lato, curar e regenerar doentes hepáticos. Seja com um fígado feito em laboratório, seja com células estaminais hepáticas.

REF: Como é que no seu dia a dia conjuga o trabalho de investigação científica com o cargo de Professor assistente no Departamento de Engenharia Biomédica e Aeroespacial na Universidade Carlos III, em Madrid? 

PB: Na verdade, não é difícil. Como tenho a sorte de ter alguns elementos mais séniores (post-doc) no grupo de investigação, são eles que fazem a gestão do laboratório no dia a dia e ajudam os alunos mais júniores. É verdade que o primeiro semestre é sempre mais duro para conjugar todo o trabalho de investigação com viagens, projetos e aulas. Ainda assim, como dar aulas sobre a minha área de trabalho é algo de que gosto muito, faço-o com todo o prazer. Ainda para mais porque o convívio com os alunos brilhantes, aos quais tenho o privilégio de dar aulas, me ajuda a estimulá-los na investigação em Biomedicina e, às vezes, a recrutar alguém para o laboratório!

REF: Qual considera ser a próxima etapa a alcançar no ramo da Bioengenharia de Órgãos e das terapias direcionadas para a regeneração do fígado, pâncreas e rins?

PB: Acho que estamos a chegar a uma fase muito interessante nesta área. Já começam a despontar a nível clínico/experimental algumas terapêuticas celulares que têm alguma efetividade para reparar estes órgãos, o que abre novas possibilidades. Isto, pois evita o transplante e diminui o problema permanente da escassez de órgãos disponíveis – algo com que todos os países se debatem há muitos anos. Na frente da Bioengenharia destes e outros órgãos, nós e outros grupos, estamos já a trabalhar em modelos animais mais próximos do humano, como o porco. Talvez por isso, e pelos resultados que começamos a vislumbrar no laboratório e nestes animais, não seja difícil de prever que este tipo de terapêuticas sejam o “standard of care” daqui a uma ou duas décadas. Gerar um fígado ou um rim de Bioengenharia com as células do doente afetado evitará a necessidade de usar fármacos imunossupr
essores e assim, assegurar uma verdadeira cura ou resolução da doença original, sem introduzir outra: efeitos secundários da imunossupressão. É uma verdadeira revolução no paradigma da Medicina. Para tal, o que nos falta, mais que ideias e know-how, são recursos. Para resolver muitos dos problemas de produção, de acordo com a legislação (GMP, regulatory issues, etc.), são necessários imensos recursos financeiros. Não penso que nos saia a lotaria tão depressa… mas, pelos doentes e pelos seus familiares, seria bom que isso acontecesse. Não é por falta de trabalho, nem de empenho na procura de recursos que realmente ainda não temos e que são tudo o que necessitamos para tornar estes sonhos e ideias numa realidade terapêutica.

REF: Quais foram as dificuldades que sentiu ao enveredar por um caminho pouco explorado pelos farmacêuticos? Foi difícil afirmar-se como um farmacêutico investigador?

PB: Sinceramente, não senti muitas dificuldades. Bem pelo contrário! Talvez porque ao entrar num programa de doutoramento integrado, com seminários e cursos, eu tive a oportunidade de refrescar conhecimentos e aprender sobre áreas que desconhecia. Acho que este ponto, a capacidade de entender e assimilar conteúdos pouco ligados à área farmacêutica, demonstra a qualidade e transversalidade do curriculum de Ciências Farmacêuticas, pois detinha os conhecimentos básicos essenciais para poder entender estas matérias. Quanto à afirmação como farmacêutico investigador, creio que esta surgiu naturalmente como consequência da minha atividade. Quando ficou claro que a investigação em Medicina Regenerativa era a minha área de eleição, acabei por tomar os passos necessários à minha independência como investigador. Aqui, pouco importou a minha formação de base (farmacêutico). Contou, isso sim, o curriculum e as ideias que tinha desenvolvido.

REF: Quais considera serem as principais características que um jovem investigador deve apresentar para ter sucesso nesta área? Pode deixar alguns conselhos para os nossos leitores estudantes do MICF que pretendam fazer carreira em Investigação? 

PB: Motivação, vontade (“ganas”), excelente capacidade de trabalho e, o mais importante, muita curiosidade e amor à arte. Pelo volume de trabalho e pela dedicação necessária nesta área, não creio que seja possível fazê-lo sem ter realmente uma paixão muito forte pela ciência e investigação. Até porque o salário que recebemos não está ao nível de outras áreas da profissão farmacêutica (ainda que não me possa queixar). No entanto, creio que, com estes atributos, se pode formar um investigador. Ou, mais do que isso, um cientista de corpo e alma.
Por último, e falando um pouco de carreiras, há algo importante que merece ser referido. Nas próximas décadas, com a eliminação de muitas profissões devido à automação e robótica, esta é uma área em que a Inteligência Artificial, ainda que benéfica, não terá um impacto potencialmente tão nefasto e pesado na supressão de postos de trabalho. Algo a considerar para quem termina a sua formação e procura uma área para crescer.

REF: Como vê o futuro da investigação científica em Portugal? Quais os maiores desafios que os investigadores científicos enfrentam no nosso país? E internacionalmente?

PB: Sinceramente, e numa visão à distância, acho que o maior desafio que a investigação nacional enfrenta é a estabilidade: a nível de recursos financeiros, investimento e de recursos humanos. É difícil manter uma equipa produtiva a funcionar quando nalguns anos há calls para projetos, e noutros não… Devido a esta inconstância, é imprescindível um pacto de governação entre os vários partidos da Assembleia da República, que permita que o orçamento para a Ciência e Tecnologia se mantenha em crescimento moderado durante cinco anos, ou pelo menos, estável. Creio que uma medida deste género protege a investigação e o desenvolvimento, bem como a aposta e o sacrifício pessoal que tantos investigadores em Portugal fazem ao longo das suas carreiras ao escolherem ficar ou voltar a casa. Não é uma medida com custos elevados e creio que os partidos da Assembleia facilmente poderiam aprovar algo assim… mas, como a miopia é normalmente grande em relação à Ciência, assim vamos. Internacionalmente, acho que, nos últimos dois anos, as coisas estão finalmente a estabilizar e a melhorar um pouco. A crise eliminou muitos postos de trabalho nesta área e as equipas foram forçadas a “emagrecer”. Há agora uma espécie de caminho inverso a percorrer. Finalmente. Mais fundos disponíveis, mais calls de projetos e uma sensação de que o pior já está para trás. Talvez por isso, seja um bom momento para quem tem ganas, curiosidade, etc. (qualidades referidas na pergunta anterior) de ganhar coragem e decidir fazer um doutoramento. O momento, esse, é propício!

Texto produzido por: Raquel Alcarpe